terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A liberdade na perspetiva de F. Savater

(…)Por grande que seja a nossa programação biológica ou cultural, nós, seres humanos, podemos acabar por optar por algo que não está no programa (pelo menos que lá não está totalmente). Podemos dizer «sim» ou «não», quero ou não quero. Por muito apertados que nos vejamos pelas circunstâncias, nunca temos um só caminho a seguir, mas sempre vários.
Quando te falo de liberdade é a isto que me refiro. Ao que nos diferencia das térmitas e das marés, de tudo o que se move de modo necessário e irremediável. É verdade que não podemos fazer tudo o que quisermos, mas também é certo que não estamos obrigados a querer fazer uma coisa só. E aqui convém introduzir dois esclarecimentos a propósito da liberdade.
Primeiro: não somos livres de escolher o que nos acontece (ter nascido certo dia, de certos pais, em tal país, sofrer de um cancro ou ser atropelados por um carro, ser bonitos ou feios, que os Aqueus queiram conquistar a nossa cidade, etc.), mas somos livres de responder desta maneira ou daquela ao que nos acontece (obedecer ou revoltar-nos, ser prudentes ou temerários, vingativos ou resignados, vestir-nos de acordo com a moda ou disfarçar-nos de ursos das cavernas, defender Tróia ou fugir, etc.).
Segundo: sermos livres de tentar alguma coisa nada tem a ver com a sua obtenção indefectível. A liberdade (que consiste em escolher dentro do possível) não é a mesma coisa que a omnipotência (que seria alguém conseguir sempre aquilo que quer, ainda que tal pareça impossível). Por isso, quanto maior capacidade de acção tivermos, melhores resultados poderemos obter da nossa liberdade. Sou livre de querer subir ao monte Evereste, mas dado o meu lamentável estado físico e a minha preparação nula em alpinismo, é praticamente impossível que alcance o meu objectivo. Em contrapartida, sou livre de ler ou não ler, mas como aprendi a ler desde muito pequeno não se trata de coisa demasiado difícil para mim, caso decida fazê-Ia.
Há coisas que dependem da minha vontade (e isso é ser livre), mas nem tudo depende da minha vontade (caso contrário, seria omnipotente), porque no mundo há muitas vontades e muitas outras necessidades que eu não controlo a meu talante. Se não me conhecer nem a mim próprio nem ao mundo em que vivo, a minha liberdade esbarrará uma e outra vez na necessidade. Mas, aspecto importante, nem por isso deixarei de ser livre... ainda que caia.
Na realidade, existem muitas forças que limitam a nossa liberdade, dos terramotos ou doenças aos tiranos. Mas também a nossa liberdade é uma força, a nossa força. Contudo, se falares com as pessoas, verás que a maioria tem muito mais consciência daquilo que limita a sua liberdade do que da própria liberdade. Vão dizer-te: «Liberdade? Mas de que liberdade me estás a falar? Como seremos livres, se nos lavam o cérebro, a começar pela televisão, se os governantes nos enganam e nos manipulam, se os terroristas nos ameaçam, se as drogas nos escravizam, e se além disso me falta dinheiro para comprar uma moto, que era o que eu queria?» Se reflectires um bocadinho, verás também que os que falam assim parecem queixar-se, mas na realidade estão muito satisfeitos por saberem que não são livres. No fundo, pensam: «Ui! Que belo peso tirámos de cima das costas! Como não somos livres, não podemos ter a culpa de nada do que nos aconteça ... » Mas eu tenho a certeza de que ninguém - ninguém - acredita deveras que não é livre, ninguém aceita sem mais que funciona como um mecanismo inexorável de relojoaria ou como uma térmita. Uma pessoa pode considerar que optar livremente por certas coisas em certas circunstâncias é muito difícil (entrar numa casa em chamas para salvar uma criança, por exemplo, ou combater firmemente um tirano) e que é melhor dizer que não há liberdade para não se reconhecer que livremente se prefere o mais fácil, quer dizer, esperar pelos bombeiros ou lamber a bota que nos pisa a garganta. Mas nas tripas sentimos qualquer coisa que insiste em dizer-nos: «Se tivesses querido... »
(...) Em resumo: ao contrário de outros seres, vivos ou inanimados, nós seres humanos, podemos inventar e escolher em parte a nossa forma de vida. Podemos optar pelo que nos parece bom, quer dizer, conveniente para nós, frente ao que nos parece mau e inconveniente. E, como podemos inventar e escolher, podemos enganar - nos, que é uma coisa que não costuma acontecer a castores, abelhas e térmitas. Assim, parece prudente estarmos bem atentos ao que fazemos e procurar adquirir um certo saber viver que nos permita acertar. Esse saber viver, ou arte de viver, se preferires, é aquilo a que se chama ética.
Fernando Savater, Ética para um Jovem

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A liberdade na perspetiva de J.P.Sartre

Dostoievski escreveu: "Se Deus não existisse tudo seria permitido". Eis o ponto de partida do existencialismo. De facto, tudo é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nem em si nem fora de si uma possibilidade a que se agarrar. Para começar não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede a essência, o homem nunca se poderá explicar por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos já prontos valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta. Assim, não temos nem atrás nem na nossa frente, no reino luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós, sem desculpas. É isso que exprimo quando digo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a simesmo e, por outro lado, livre, porque uma vez lançado no mundo é responsável por tudo aquilo que faz.

Jean Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo

A liberdade na perspetiva de B.Espinosa

(...) Uma pedra, por exemplo, recebe de uma causa exterior que a atira uma certa quantidade de movimento e, mesmo depois de acabar o impulso provocado pela causa exterior, a pedra continuará, necessariamente, a mover-se (...). O que se verifica com a pedra é válido para toda e qualquer coisa singular independentemente da sua complexidade, na medida em que todas as coisas são necessariamente determinadas a existir e a agir de dada maneira por uma causa exterior.
Concebei agora, se o quiserdes, que a pedra enquanto se move, sabe e pensa que faz todo o esforço possível para continuar a mover-se. Visto que tem consciência do seu esforço, a pedra julgará ser livre e que a continuação do movimento ocorre porque ela quer.
Assim é a liberdade humana que todos os homens se gabam de possuir e que consiste unicamente no facto de os homens terem consciência dos seus desejos e ignorarem as causas que os determinam. Uma criança julga desejar livremente o leite. Um ébrio julga dizer, por decisão sua, aquilo que, quando voltar a estar sóbrio, quereria ter calado.
Este preconceito, sendo natural em todos os homens, dificilmente será abandonado por estes.
E, no entanto, a experiência ensina que se há coisas de que os homens são pouco capazes é de controlar os seus desejos. De facto, mesmo constatando que, perante dois desejos contrários vêem o melhor e executam o pior, continuam,entretanto, a acreditar que são livres.
B. Espinosa, Lettre a G.H.Sculler

domingo, 4 de dezembro de 2011

Poema do livre arbítrio, de António Gedeão

Há uma fatalidade intrínseca, insofismável,

inerente a todas as coisas e nelas incrustrada.

Uma fatalidade que não se pode ludibriar,

nem peitar, nem desvirtuar,

nem entreter, nem comover,

nem iludir, nem impedir,

uma fatalidade fatalmente fatal,

uma fatalidade que só poderia deixar de o ser

para ser fatalidade de outra maneira qualquer,

igualmente fatal.


Eu sei que posso escolher entre o bem e o mal.

Eu sei que posso escolher fatalmente entre o bem e o mal.


E já sei que escolho o bem entre o mal e o bem.

Já sei que escolho fatalmente o bem.

Porque escolher o bem é escolher fatalmente o bem,

como escolher o mal é escolher fatalmente o mal.

O meu livre arbítrio

conduz-me fatalmente a uma escolha fatal.